quinta-feira, março 30, 2006

Sem falsos pudores

Não era a dúvida que eu queria introduzir, era uma coisa menos discutível, mais induvidável. O que eu queria era que ele, pelo menos uma vez, experimentasse a minha macã, o meu fruto proibido, a flor escura desta árvore do Bem e do Mal que é, afinal, um corpo.

quarta-feira, março 29, 2006

Partes isoladas

O sorriso dele, apesar da imperfeição (ou graças a ela, que o tornava mais sedutor), foi uma constante, quase excessivo. Olhos muito vivos, grandes, e de olhar doce, embora incisivo, com uma fixidez dominadora. sobrancelhas grossas, que eram quase uma só sobrancelha que marcavam a fronteira entre os olhos e a testa. Boca forte, os lábios macios, a língua comprida e afiada, perigosa. Com efeito, recordo-o assim.

O silêncio dela

Há 2 dias que não escreve. Tem ando demasiado ocupada a sonhar.

segunda-feira, março 27, 2006

Recado à hora de Verão

Hora de Verão, não fazes jus ao teu nome? Esperava-te radiosa e feliz.

Recado à Primavera

Primavera, podemos trocar gestos de gentileza e galhardia?

Nódoas negras sentimentais

Não se zange Jorge, deixe-me usar esta letra por uns minutos... cantá-la baixinho, serve para mostrar a minha falha sentimental.

Eh pá, deixa-me abrir contigo
desabafar contigo
falar-te da minha solidão
Ah, é bom sorrir um pouco
descontrair um pouco
eu sei que tu compreendes bem

O bairro do amor é uma zona marginal
onde não hã prisões nem hospitais
no bairro do amor cada um tem de tratar
das suas nódoas negras sentimentais

quinta-feira, março 23, 2006

Vistos e tocados

Vou confessar uma coisa que as mulheres quase nunca confessam e é uma grande verdade: nós ligamos mesmo ao tamanho, o tamanho é mesmo importante ou, melhor dizendo, as mulheres preferem-nos grandes. Não descomunais por comprimento ou calibre, mas sim notórios quando se exibem ao ar livre, quando se libertam. Não o confessamos muito abertamente porque temos vergonha. Algumas refugiam-se naquilo de que o que importa é o uso, mas nisto é mesmo verdade aquilo de que tudo seduz pelos olhos, e é também pelos olhos que isso começa a seduzir.

O pressentimento

O pressentimento não é um poder secreto ou esotérico que alguns mortais especiais possuem. Todos nós estamos dotados deste poder. Só que ele não é racional, é feito de lembranças que não temos presentes e feito da memória da espécie, que sabe mais por velha do que por qualquer outra razão.

quarta-feira, março 22, 2006

Ave de longo voo

Os ritmos. Nesta área conheço-lhe todos os extremos. Desde aquele que era vertiginoso como o trovão até ao outro que, como os rios, nunca chegava a passar totalmente. Depois de uma pausa lá continuava ele, a embalar-me docemente como um condor que plana sobre os cumes, como um alcatraz num favorável remoinho de ar. Às vezes lançava-se a pique sobre mim. Era uma coisa arrebatada, premente. Apoderava-se do meu corpo, parecia morder-me às bicadas o útero, chegava, impunha a sua vontade, elevava-se com a sua presa no bico. E renascia pouco tempo depois como a ave de Fenix.

terça-feira, março 21, 2006

Post fora de horas

Todos os dias, ao voltar para casa, ao fim do dia, tirava um caderno e fazia uma espécie de acta ou memorial das palavras do dia. Um memorando diligente, personalizado, nada pormenorizado de tudo quanto pensava, com todas as ditas e desditas da sua vida. Hoje apeteceu-lhe de manhã, porque ela, como toda a gente, não é só as histórias que conta, não é só as palavras que saiem da sua cabeça, é também as palavras que saiem da boca: Boa dia. Bom dia!

segunda-feira, março 20, 2006

Meia idade

Estava a metade do caminho da vida: achava-se jovem e achava-se velha, sem ser uma coisa nem outra. Estava a metade do caminho da vida, na linha de sombra, nessa sesta de existência em que, já não há juventude nem ainda senectude, mas sonha-se com ambas.

Verdade/Mentira

É preciso acreditar no outro, mesmo que seja mentira, porque se o outro está a mentir, deve ser por alguma razão, não é por malvadez que se oculta a verdade, é mesmo preciso. Ninguém suporta uma verdade completa e permanente. Com menos desconfianças, as mentiras podem ser verdades.

quinta-feira, março 16, 2006

O mais feliz dos cansaços - versão masculina

Esses berros também o afastavam da realidade, estonteavam finalmente a sua cabeça, enlouqueciam-lhe o bom senso, ocultavam-lhe o entendimento, davam-lhe uma força incrível nos rins, devolviam-no para o seu passado de macaco, anunciavam-lhe um gozo animal que era como correntezas de sangue electrizado por todas as células do seu corpo, arrancavam-no desta realidade, mergulhando-o por alguns segundos na outra. No fim, parecia um animal ferido.

quarta-feira, março 15, 2006

Diagnóstico

De novo uma prisão no estômago, um vazio nos rins, uma acidez no esófago, uma fraqueza nas mãos, uma ira no sexo, uma contracção nos músculos e uma confusão na cabeça que, acrescentada ao resto, alagou-me a testa e o nariz em suor. Maldita ansiedade, frenética ansiedade.

segunda-feira, março 13, 2006

"Terá mesmo existido o sítio onde estivemos?"

Quando entrava em casa, dava-lhe como que uma languidez, uma apatia, uma vontade de repetir versos em voz alta, ficava romântica, saudosa, não protestava contra o mundo, ria com alguma loucura, com coragem e delicadeza. Estava certa que os poetas tinham sido chamados para redimir o mundo e recitava de cor os mesmos versos de Ruy Belo: "Era tudo tão simples quando te esperava".

domingo, março 12, 2006

Espelho

Olho-me no espelho e vejo que o tempo foi passando e que no meu corpo ficaram a viver os vestígios do seu passar. Vejo-o nos ângulos, nas sequências, nas poses, nos aspectos, nas imperfeições, toda eu. Está perfeito.

sexta-feira, março 10, 2006

Jejum da palavra

O silêncio da noite não é nada. O grave é mesmo a quantidade de palavras que não podem ser ditas à noite: "Cheguei"; "Como correu o teu dia?"; "Vou tomar um banho, abres o vinho?"; até mesmo o "Hoje não, tenho dores de cabeça". Deve ser por isso que leio em voz alta. Em nada abona a meu favor, reconheço, e o pandemónio da minha loucura é mais do que seguro assim. Uma loucura bastante inócua, é verdade, mas, de qualquer maneira, não é uma doença na percepção do mundo.
Não perceberam? Eu explico, é mais ou menos assim: é chegar a casa e deixar de sentir as palpitações no pulso.

Sabes...

Queria ver-te sozinho, queria pensar-te sozinho sem outras presenças a incomodarem. Admito recordações mas não a presença de alguém. Quero o resto do mundo entre parênteses, nenhuma intromissão estranha aos nossos assuntos privados.

quinta-feira, março 09, 2006

Parvoíces

No início as suas palhaçadas pareciam-me piadas, ficava com vontade de rir de cada vez que ele falava, eram como borbulhas de coca-cola, umas efervescências sem sentido mas agradáveis de ouvir por um bocado, de sentir as suas leves cócegas na garganta e a sua vaga espuma entre os tímpanos. Até que, saciada de carícias, reparava que estava a falar a sério, o parvo, quando dizia as suas parvoices redondas, as suas vazias bolhas de sabão de babas. Não, não se armara em parvo, como eu pensava no início, era mesmo um parvo.

Pergunto:

Porque será que quando visto uma saia, chove?

Pergunto:

Porque será que quando vou ao cabeleireiro, chove?

Pergunto:

Porque será que quando estreio uns sapatos novos de camurça, chove?

quarta-feira, março 08, 2006

Divagação sobre as tetas

As tetas fascinam. A começar pelo seu castiço nome, tetas, que é muito melhor do que as variações tontas que as pessoas lhes inventaram. Essa mesma parte é nomeada pelas senhoras de busto. Os sentimentais chamam-lhe peito, os médicos mamas e os românticos seio. Mas a única palavra para designar essa pertuberante repetição feminina, disso tenho a certeza, é aquela magnífica cocofonia: tetas.
Busto lembra-me uma escultura. Seio não é assim tão mau, mas não acho bem usar palavras do género masculino para referir o que é tipicamente feminino. Além disso acho seio eufemístico demais e tem o mesmo problema do peito: fica mal no plural. "Vi o seu seio descoberto" pode ser, mas "vêem-se-lhe os peitos" não fica bem, fica horrível. Para não falar no facto de que seio evoca qualquer coisa de côncavo, de oco, e o que aquela parte da mulher tem de fascinante é que costuma ser claramente convexa, cheia, quase enchida.
Teta é melhor, e não é só por ser do género feminino. O repetido parece remeter para a sua duplicidade e é uma daquelas palavras que parecem confudir-se com a coisa, numa correspondência exacta e não arbitrária. Chamemos tetas às tetas.

terça-feira, março 07, 2006

Madrugada serena

Está tudo em silêncio. A madrugada tem este dom, de nos fazer sonhar com o silêncio, com o abandonar do perigo, com o refugiarmo-nos em frias montanhas, íngremes, isolasas, mas com boas vistas, longe da peste, e nunca mais ouvir o próximo, embevecidos com o vento e os pássaros, no vaivém sereno das formigas em fila.

segunda-feira, março 06, 2006

O padrão da pele

Nu era como uma iluminação. Tinha a cor mestiça dos trópicos, que é a perfeição porque não é nem o leite dos nórdicos nem o chocolate dos africanos nem o amarelo pálido dos asiáticos, mas sim a canela perfeita que reune todos eles, os contém e magnifica. Uma cor total, uma cor não racista, a mesma cor que a humanidade virá a ter quando acabar por se misturar completamente, que é o que ela tem de fazer.
Mas se calhar não, talvez não, a beleza do mundo está na sua variedade, com todas as cores e com pessoas tão diferentes, a canela, o preto, o branco, o vermelho, o amarelo.

Roça a minha orelha com a pele do teu nariz

Muito amor com palavras, muitos planos futuros, muitas epístolas de vinte páginas, muitas prendas e surpresas às quatro da tarde, mas beijos mesquinhos, abraços poucos apertados, carícias entre gélidas e insossas; pouca aproximação com muita distância. Que graça é que isso tem?

Início do fim

Esquecemos alguém quando já não há mais aventuras de leito a imaginar, nem dramas do coração, nem entusiasmos da pele, nem recordações da carne.

domingo, março 05, 2006

A requintada tensão

Os lábios não são suficientes. O ar que sai da boca, repleto de palavras, não chega. Os quatro lábios encostados que formam ventosas, válvulas hidráulicas, intercâmbios de gérmenes, mordidelas, rumores de sucção, tudo isso não demonstra nada. Procurar nos beijos e nas palavras uma demonstração, a incrível coincidência de ela o amar ao mesmo tempo que ele a ama. Alguém pode garantir que os dois pensam na mesma coisa quando um casal está a beijar-se? Os olhos ficam fechados e poderia dizer-se que o mundo, para os dois, se resume às suas bocas. Mas existem vermes que roem a certeza do beijo: a dúvida, o medo, a desconfiança.

Enigma

Assim, de repente, sem qualquer explicação, vi-me sentada no Rouge, naquela mesinha redonda e minúscula que havia ao fundo da sala, no canto direito. E lembro-me do que me disseste nesse dia: Consigo apenas fazer-te sorrir. Mas nunca hei-de compreender-te. Hoje responder-te-ia: Procura nos olhos. Nos olhos procuramos a verdade e a mentira. É nos olhos que se esconde e se revela tudo da outra pessoa. Toda a mulher é identificável pelo seu olhar.

O Tu e o Você

Nunca soube muito bem porque gosto do Você. O Tu é prático, é directo, é informal.
Mas gosto desta pequena grande formalidade que é ouvir: Maria, quero fodê-la. Soa muito melhor que: Maria, quero foder-te.

quinta-feira, março 02, 2006

Sabes...

Não sou viciosa nem virtuosa. Não tenho que prestar homenagens nem ao vício nem à virtude (sabias que a hipocrisia é a homenagem que o vício presta à virtude?). Sou como sou e queria oferecer-te esta prenda que é o mostrar-te os meus dias.

Sabes...

Ontem sentia-me sozinha mas hoje sinto-me só.

Sabes...

Querer saber a verdade é uma das perversões do amor.

Viajando

Tenho usado os transportes públicos, agora que não posso conduzir. Às vezes taxis, para não perder tempo, mas sobretudo autocarros, comboios e metro, para olhar, para variar, para aproveitar, fazendo por prazer o que a maioria das pessoas faz por obrigação. Sinto-me como um político em campanha, daqueles que dizem: "É preciso misturar-se com o povo, camaradas, é preciso misturar-se com o povo para compreender este país." Mas eu até fico contente por me misturar com o povo. Sinto que que aí está, finalmente, uma cidade que eu nunca vira, só de longe, como de um sítio distante. Raparigas de bluza apertada e seios volumosos no autocarro, rapazes com uma maneira de falar que não percebo, auscultadores com música alta, cheiros esquecidos desde os dias de infância, tipos com bigode, sempre com bigode, ao menos 70% com bigode, conforme uma estatística que vou fazendo para me distrair.
Peço ao leitor que não fique mal impressionado com este discurso. Dei-me agora conta que pareço uma extraterrestre, uma boneca da Disneylândia. Não é nada disso. As multidões assustam-me, simplesmente.

quarta-feira, março 01, 2006

O ciúme feminino

As pessoas dão-se conta de milhões de coisas sem terem necessidade de dizê-las. Por exemplo, quando uma mulher tem ciúmes, as outras mulheres reparam logo só olhando para a sua cara, mesmo sem ela ter dito uma palavra. O gesto feminino dos ciúmes é um gesto conhecido, antigo como a espécie, inconfundível como o gesto do choro, como o esgar da dor, como a careta do riso. Basta ser-se mulher para conhecê-lo noutra mulher: é possível ler na cara de uma ciumenta como num hieróglifo com a chave resolvida e as outras olham-na com aquele sorriso, entre esperto e condescendente.

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