segunda-feira, dezembro 26, 2005

Chá com pão-de-ló

Acho que fui feliz neste Natal. A ceia foi agradável, um bacalhau perfeito, e foram muitas as conversas. No outro dia tomámos juntos o pequeno almoço, no meio de uma deliciosa serenidade. É o meu momento preferido, o do pequeno almoço de Natal, ainda de pijama, o meu pijama novo de Natal, que a minha mãe me compra todos os anos. Chá com pão-de-ló. É assim desde criança e há rotinas que não quero passar a lembranças.

sábado, dezembro 24, 2005

Um Feliz Natal

Bem, para que não digam que aqui só há tristezas e pessoas tristes, vou cantar:
Ella Fitzgerald -Have yourself a Merry Little Christmas

Natal

Natal de quê? De quem?
Daqueles que o não têm?
Dos que não são cristãos?
Ou de quem traz às costas
as cinzas de milhões?
Natal de paz agora
nesta terra de sangue?
Natal de liberdade
num mundo de oprimidos?
Natal de uma justiça
roubada sempre a todos?
Natal de ser-se igual
em ser-se concebido,
em de um ventre nascer-se,
em por de amor sofrer-se,
em de morte morrer-se,
e de ser-se esquecido?
Natal de caridade,
quando a fome ainda mata?
Natal de qual esperança
num mundo todo bombas?
Natal de honesta fé,
com gente que é traição,
vil ódio, mesquinhez,
e até Natal de amor?
Natal de quê? De quem?
Daqueles que o não têm,
ou dos que olhando ao longe
sonham de humana vida
um mundo que não há?
Ou dos que se torturam
e torturados são
na crença de que os homens
devem estender-se a mão?
(Jorge de Sena)

quarta-feira, dezembro 21, 2005

O mais triste dos silêncios

O mundo, o mundo todo, até o mundo inerte parece vivo à noite, no escuro e no silêncio. Barulho de todas as coisas, de toda a espécie, até da terra que roda na sua insaciável mecânica celeste, mas não de pessoas. Nunca de pessoas porque aqui não há ninguém.

Neste Natal não pense, cante:

I'm confessin' that I love you, tell me, do you love me too?
I'm confessin' that I need you, honest I do, need you every moment.
In your eyes I read such strange things, but your lips deny they're true,
Will your answer really change things, making me blue?
I'm afraid some day you'll leave me, saying "Can't we still be friends?",
If you go, you know you'll grieve me, all in life on you depends.
Am I guessing that you love me, dreaming dreams of you in vain?
I'm confessing that I love you, over again.
(I'm confessin' - Lizz Wright)

Neste Natal não pense, diga:

Sacana, covarde, sujo, macaco, mandril, orangotango, porco, cochino! Já não distinguia as palavras dos insultos, todo um zoológico de insultos malcheirosos.
(dedicado ao vizinho do 3º Esquerdo)

Ontem, hoje e amanhã

O seu passado não é nada, o grave é o presente e o futuro não existe.

segunda-feira, dezembro 19, 2005

O nosso umbigo

Não há nada mais difícil de ver do que aquilo que temos perto, mesmo à nossa frente, especialmente se a única coisa com que nos preocupamos é o nosso pequeno mundo interior e o nosso espaço sentimental, se tudo fica limitado a problemas de trabalho, assuntos de escritório e ciúmes obcecados de casal.
E de repente chega o Natal e somos todos tão queridos, tão humanos, tão altruístas, como se tivéssemos nascido para ajudar quem mais precisa, envoltos num aro amarelo de anjo preso à nossa estúpida cabeça, de sorriso solidário, hipócritamente colocado no rosto.
E depois do Natal, a solidariedade entra em saldos?

De volta

É uma pergunta impelida mais pela vaidade do que pelo interesse: Sentiste a minha falta?

quinta-feira, dezembro 15, 2005

O céu

Tentou dizer-lhe alguma coisa, protestar, perguntar. Queria meter-se no carro e voar até ele, para lhe dizer nos olhos, porque é nos olhos que está a verdade, que não o esqueceu, porque esquecer é muito demorado, dura imenso. E quis dizer-lhe com olhos generosos e um espírito alegre que aqueles serões juntos tinham-lhe provocado uma sensação de bem estar, aquilo que, se existisse, seria sem dúvida o céu. Sim, ele oferecera-lhe o céu, embora ele não saiba.

quarta-feira, dezembro 14, 2005

Atingiu-se...

Uma espiral de confusão onde a culpa governa sem controlo: Foi culpa minha, mas fi-lo por culpa tua. Atinge-se o incompreensível, a derrota da lógica.

O ataque como última defesa

É horrível quando se vive, afinal, no delírio enraivecido dos medrosos.

Da ficção para o real

Um nome, de repente, carece de cara e de qualquer referência. Quem será?

Desapareceu, sem gastar mais palavras

Quatro horas da manhã. Deu-se conta que se perdeu em pensamentos diversos. Esperava ver o dia clarear e com esse novo dia, tudo voltaria a ser como dantes. Esqueceria esse episódio, como erro ou desvio insignificante, apetite ignóbel que se tinha satisfeito irreflectidamente, mais nada. Assim estaria melhor, sim bastante melhor, sem intruso, sem interferências.

terça-feira, dezembro 13, 2005

Vago e desajeitado

Quando lhe perguntava alguma coisa mais concreta, dava-lhe sempre uma resposta vaga, não com palavras mas com um gesto de sobrancelhas e a mão que deixava toda a liberdade à sua interpretação. Ele tinha uma relação invulgar com a linguagem, só dizia o que queria, fazendo jejum do sujeito, do verbo e, sobretudo, do advérbio.

Início do fim

Acabou com os comentários, escorraçou-os como um animal, de rabo entre as pernas, condenado à morte, culpado sem apelação.

Caderno de apontamentos

Este é o caderno com os apontamentos das suas noites. Um caderno dividido em capítulos, em episódios, em estados de alma. Tinha-lhes atribuido uma ordem, tinha-os completado com notas à margem, com apontamentos adicionais apressados em frases alusivas e soltas, ía enchendo os espaços vazios de histórias, alheios de lembranças, órfãos de palavras, e ia-os completando até com mentiras, com exageros, com coisas inventadas.
Lê-os, lendo-se a si própria nas suas histórias, como hipnotizada, às vezes aterrada com as suas próprias palavras, tão rápidas, tão injustas, tão esquemáticas. O seu passado era aí uma terrível mentira, uma confusão, um desapontamento. Era ela, sem dúvida, mas não era ela. Reconhecia-se e não. Era um espelho opaco da sua vida.

domingo, dezembro 11, 2005

Em privado

Durante três dias pensara na combinação exacta, na fórmula mágica, na poção calculada para fazer com que a alegria dela contaminasse a dor simétrica dele, como morfina.
Sufucou o seu desejo em páginas cheias de riscos, escreveu, apagou, voltou a escrever, voltou a apagar. Nenhuma palavra lhe parecia a mais certa, todas insossas. Passou três dias a escrever-lhe em pensamento, um caderno inteiro. Esse caderno nutria-se de vida.

quarta-feira, dezembro 07, 2005

Objecto passivo

Às vezes detestava a pressa com que ele fazia as coisas. Metiam-lhe impressão as suas ânsias, a sua pressa, o repentino assalto sem preâmbulos, a sua vontade total, com gritos de enlouquecido, como um ímpeto de marinheiro ou de preso depois de meses de abstinência.

Desolação

Tinha estado toda a noite concentrada no telefone. Em alerta máximo, vigilante, como um porteiro, como um zelador.
Com o passar das horas viu-se num estado de tristeza deplorável e de frustração. Repetiu uma palavra: burra. E essa palavra ficou rígida na sua cabeça como um disco riscado.

terça-feira, dezembro 06, 2005

conjecturas

Não percebia o que lhe estava a acontecer a ele em abstracto, nem o que lhe estava a acontecer a ela, em concreto. Mergulhou num mar de inúteis conjecturas das que nada tirou a limpo. Confortou-se pensando que seria passageiro, uma coisa provisória, uma questão de hormonas, uma parvoice qualquer transitória, mas no fundo sabia que esse conforto era falso.

segunda-feira, dezembro 05, 2005

Oração quotidiana

E nunca mais ouviu Lizz Wright. Pelo menos aquela música.Lizz Wright - Dreaming wide awake

A defesa a desmoronar-se

Ela era um xeque de rainha e ele um rei humilhado, procurando proteger-se entre três peões coxos, torres rachadas e cavalos canhotos.

A derrota da lógica

Destruira o amor por incapacidade de suportar o seu excesso.

sexta-feira, dezembro 02, 2005

Certos gestos

Arregaçou-lhe a manga e começou a fazer-lhe, com as pontas dos dedos, aquelas cócegas que a sossegavam, para baixo e para cima no antebraço, no braço, do pulso ao ombro, uma vez e outra, e depois as carícias.

quinta-feira, dezembro 01, 2005

Mau feitio

Discutiu, arrotou palavras, disse o que não queria, com a cara contraída numa careta esquisita.
E ele pensou: deve estar pré-menstrual, e depois corrigiu o seu pensamento: tomara que esteja pré-menstrual.

Criações ou deformações do cérebro

As histórias dela eram tristes, completas ou incompletas, desoladoras ou terríveis, breves, apressadas, sempre exageradas, como tudo nela.

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