quinta-feira, agosto 31, 2006

Para ouvir, segunda vez

terça-feira, agosto 29, 2006

Sobre ti

Deus fez a criação perfeita na tua boca.
(para que saibas)

Depois de ontem

Na noite passada, no umbral do sono mais profundo deixou escapar dos seus pulmões uma espécie de oração ou breve jaculatória literária: Deus me ajude que não sei o que me aconteceu. Depois de hoje tudo muda. Tudo.

Memória

A mémoria é um fenómeno para o qual só podemos encolher os ombros e aceitar. A memória cria os seus buracos com selectores sábios do que é importante ou do que é descartável e é delicioso como as pessoas reparam na sua boa memória quando tentam esquecer alguma coisa.

sexta-feira, agosto 25, 2006

Sobrevivência

Com este léxico tão exíguo, era quase impossível escrever-te uma história decente. Como referir uma parte do corpo imune, se todo o corpo não sabe estar mudo, quieto e indiferente? Agora não, não consigo, é uma questão de sobrevivência, só sei dizer duas palavras, e que venham seguidas, nessa mesma ordem: morder e lamber.

quarta-feira, agosto 23, 2006

Como um flash, em dois ou três disparos

Os verdadeiros motivos da lembrança, como sempre, são múltiplos: a luz da primeira vez, a escuridão, o mundo entre parênteses, os dedos entre as rachas das nádegas, os olhos tapados com a boca, sem blusa e sem pudores, tu nos meus poros, unhas, pele e todos os meus orifícios. Para ter uma boa lembrança é preciso uma ilusão, mesmo que seja de todo imaginária. Vou parar. Tenho a cabeça congestionada de saudades.

Íntimas partes

Apeteces-me ao olfacto. Reconheço-te pelo cheiro, porque cada segmento do teu corpo tem o seu cheiro especial, e não sei qual dos três é que mais quero agora, se este por suave, esse por gastronómico ou aquele por forte.

Aos serões perfeitos


(Para P.)

A ouvir, deitada perguiçosamente na cama

terça-feira, agosto 22, 2006

A pensar, deitada perguiçosamente na cama

Maria abria os olhos e via-o. Olhava-o de olhos bem abertos. Quer dizer, de olhos muito abertos. Aliás, com olhos imensos, arregalados, assustados. No início, na verdade, nem olhava para ele. Nem de olhos abertos nem de olhos fechados. Não o olhava e nem sequer queria recordá-lo ou imaginá-lo. Nunca sonhava com ele, nunca olhava para ele. Mas se calhar este não olhar tornava-se numa foma ainda mais subtil de gostar. A verdade é que nunca saberá a verdade, porque nem ela própria sabe. Ela às vezes pensava que gostava realmente dele, mas que não dava por isso; ou que gostava realmente, sim, mas que não queria mostrar; outras vezes acreditava que não gostava dele, mas porque não o tinha visto bem; outras, ainda, que não gostava dele, mas que depois gostou.
Aliás, que importa, se agora gosta realmente, e se é possível haver amores à primeira vista, então também o é à quinta.
Sim, gosto dele, do Mundo, afinal.

segunda-feira, agosto 21, 2006

A reencarnação

Perguntou-me em que é que eu gostaria de reencarnar depois da minha morte, pois ele dizia ter um esconjuro para fazer cumprir, com uns 87% de probabilidade, qualquer desejo nesse sentido. Então eu disse-lhe que gostaria de ser pedinte em Istambul, varredora em La Paz, costureira em Milão, vaca em Nova Deli ou puta em Paris.
Parva.
Parva já sou, não te esforces.

quinta-feira, agosto 17, 2006

Conjunto mágico

Escreveram-lhe: "O inconsciente articula-se como uma linguagem".
Eu li, estes meus olhos leram, eu li em directo a revelação do Grande Mistério do Ser: o nosso inconsciente articula-se como uma linguagem. Amén. Isto do amén sou eu que digo, eu que só nos padres vi tanto fervor.

quarta-feira, agosto 16, 2006

O tempo convida a pensar

Na infância, ou pelo menos na sua lembrança da infância, o tempo não passava. Agora, pelo contrário, e verificava isto ano após ano, tinha notado que o tempo acelerava o seu ritmo. Tinha medo de que, se essa aceleração continuasse constante, no fim da sua vida se sentisse o passar do tempo como um rolar por um despenhadeiro abaixo, como a queda livre por um precipício para a garganta escura da morte. Precisava agora de um passo menos agitado, lento e certo. Ocorreu-lhe a parcimónia de uma vaca sagrada da Índia. Estranha visão, esta.

sábado, agosto 12, 2006

Do lado de cá, sem ninguém a observar do lado de lá

Deixou de se sentir observada, como do outro lado dum vitral polarizado, em espelho. Mas agora, não sendo vista, observava tudo e todos de dentro. Raro privilégio, do ponto de vista do espelho. Espia invisível, e às vezes envergonhada, de um acto de intimidade. Exercício interessante, este.

Renovada curiosidade

A esta altura já todos os meus leitores desapareceram. Nado à-vontade neste oceano, enorme, sem perspectivas de terra à vista. Não sei o que sinto aqui sozinha, respiro com força pelo nariz e pela boca, como depois de um longo mergulho no mar. Os olhos avermelhados, a pele congestionada, o rosto lívido, uma expressão de medo. Este espaço já não me pertence, agora era preciso ficar à espera, à espera de senti-lo, esse defunto insepultado, este espaço que deixei adormecido. Observo-o. Conserva em parte o encanto. Não sou capaz de ir-me embora pelos próprios meios. Se fosse capaz, tudo seria mais fácil e eu não teria de me esforçar para fazer o que não quero: deixá-lo.

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