terça-feira, abril 25, 2006

Insónia sobre o tempo

Faz hoje 35 anos. O mesmo impulso, o mesmo ímpeto, tudo nela se mantem. Dominava-a agora o pânico de envelhecer. Não, não era velha, nem conhecia muito bem o que significa ser velho. Maleitas, supunha, consciência de que grande parte da vida fora ocupada em banalidades sem qualquer importância. Mas não era velha ainda, longe disso. Em que altura da vida será que uma pessoa se resigna à primeira ruga que aparece? Por ser vaidosa tinha terror do passar dos anos. Ou aliás, não exactamente do passar do tempo, mas do deterioramento do corpo que ele traz consigo.

sábado, abril 22, 2006

Boa noite

Silenciosa e vaga, sem vontade de mutismos ou palavras enganosas, esperou que o chá a ajudasse a encontrar o sono, noutras noites esquivo e, nessa noite fria, acolhedor.

Sem retrospecção

Os seus amantes narrados no passado impediam-na de se preocupar com aquilo que era mesmo importante: os seus possíveis amantes do presente.

quinta-feira, abril 20, 2006

A pensar pensamentos

Quando adormeceu soergueu-se e começou a olhar para si, come se estivesse a dedicar-se um último olhar. Pegou devagar no seu braço, com cuidado, não quis acordar-se. Ali estavam, na ponta dos dedos, as palpitações, as terminações nervosas, o letárgico ritmo do coração. Um dia há-de parar, da mesma maneira que um dia começou a sentir, mas por enquanto o sangue passava intermitente, forte. Dormia quase serena, alheia à sua morte iminente. Sem saber que já era moribunda, duas ou três horas mais tarde, acordou, entre morta e adormecida. Mas viva.

terça-feira, abril 18, 2006

O corpo caduco, decadente, decrépito

Deve-se chegar a uma altura em que é inútil. Intervêem então os cirurgiões plásticos, dando um jeitinho na firmeza da nádega, na turgência dos seios, nos sedimentos de gordura na papada, diminuindo a gordura do ventre e os pés de galinha dos olhos. Lá estão as tintas para pintar o cabelo, as loções, os cremes, as máscaras, os tratamentos de mar, de sol, de água, de argila. Sim, homens e mulheres procuram cada vez mais antídotos contra o envelhecimento. Lutam para não sofrer esse processo que evidencia o deteriorismo, para não sentirem perante o espelho o passo do animal enorme que é a morte.
Um dia ninguém gostará de si nem de mim, ninguém, nem nós próprios.

Juventude

Os anos dão uma sabedoria que se os jovens também a tivessem seriam insuportáveis.

Sem desejo e sem ânsia

Não lhe ocorreu nada para escrever. Deixara passar o tempo durante muito tempo. Deixara-o passar.

sexta-feira, abril 14, 2006

Que venha urgente a luz do dia

Senti-me imóvel, deitada, a olhar para o tecto. E depois esta ansiedade, esta ideia absurda que se me levantasse escreveria um post brilhante porque tudo fervilha em mim. Mas não, limito-me a dizer que daqui a pouco a luz entra pelos cortinados, e quando os abrir completamente, a luz inundará ainda mais o quarto. E quero que entre tanta luz que a claridade me aleije as pálpebras. Quero um jacto de luz a penetrar a janela, tão intenso, que me vista de amarelo. Quero parecer uma actriz a descansar depois de uma cena de amor, iluminada, contudo, pelos focos.

O culto da solidão

Não há nada mais demonstrativo que uma véspera de feriado em casa para nos sentirmos egoistamente sozinhos.

Sobre a intimidade

Se continuasse a crescer viria a ser alguma coisa, mas agora não é nada, é um programa que mal começou a correr, interromper essa evolução celular não é grave, a própria natureza o faz a cada momento.

quinta-feira, abril 13, 2006

Com a maior das ternuras

Não julgues que te castigo com a minha ausência. Dei em mim própria o golpe de misericórdia e tive a delicadeza de ser brutal.

Tu e o resto todo

Dedica-te aos sobrinhos, ao voluntariado, à tua gata, aos gatos da rua, aos animais todos, à escrita, mesmo essa porcaria que escreves, aos livros, ao trabalho, sobretudo ao trabalho, às férias, prolonga os dias com outras coisas, aprende música mas vive em cativeiro, à distância, porque o amor não é para ti.

Hoje, neste instante, agora mesmo

Não tenho que explicar porque escrevo tanto hoje. Tantos posts, tantos emails. Quero mais é tropeçar neles, afogar-me neles, inundar-me deles, transpirá-los pelos poros, esperar por eles, evadir-me neles, deliciar-me com eles, intermitentes, até enjoar, vomitar, apanhar uma congestão por uso abusivo e saciar-me.

quarta-feira, abril 12, 2006

Ausência de muito

Sempre nas vésperas do meu aniversário sonho em começar a ser a pessoa que deveria ser. Deve ser do peso da idade, a ansiedade, assusta-me o não saber lidar, o não perceber, o não conhecer. O pior é o coração, o coração ferido de tanto não sentir.

Sem preconceitos?

Castigada à pedrada, por aqueles que não se limitam a atirar a primeira pedra, mas a segunda, a terceira, e mais uma, e mais outra, ou ainda pior, emparedada viva.

Auto-retrato

Não era rígida. Pelo menos não era com os demais.

Desejo para este serão

Sofrer o feitiço da eloquência.

Imperfeito silogismo

Gosto de silêncios. Uma presença silenciosa ao meu lado tornava-se sempre numa obsessão.

Imaginação

Olhava-o, tocava-lhe, cheirava-o, percorria-o todo.

Insónia em frente ao espelho

Em noites de insónia olho-me no espelho e vejo com ódio as olheiras azuladas acentuadas, os papos nas pálpebras, o cabelo despenteado, duas brancas que teimam em ganhar terreno ao cabelo preto. Leio a pauta da minha testa e vejo que reproduz a letargia de um adante, um adágio tristíssimo e sem brio. Faço uma careta de desprezo, ao mundo, a mim própria, e forço-me a dormitar alguns minutos, tarde na vida, no crepúsculo do meu corpo, sob quase luz fresca da manhã.

terça-feira, abril 11, 2006

Aos meus leitores

Numa repentina clareza apercebo-me que nunca dediquei uma linha aos meus leitores. Venho aqui, acrescento exageros à verdade, faço com que as palavras digam muito mais do que eu, depois rasgo, cada pedacinho uma letra, e deito fora. E nem me lembro que alguém possa ler. Os meus leitores. Muito poucos, à custa desta teimosia em manter o bloque quase anónimo, mas intensos. Sim, os meus leitores são intensos. Puxam de mim as palavras e no fundo escuro do crânio provocam-nas.
Gosto quando me escrevem, mesmo que nunca responda. É certo que a minha vontade em responder oscila consoante a proximidade ou afastamento que quero ter, mas isso também as marés.
Tenho uma relação invulgar com a linguagem, é um facto. Mas isso não é grave. O grave é a quantidade de palavras que as pessoas dizem sem serem pensadas ou sentidas. Sobretudo sem serem sentidas. Vão largando palavras, desmedidas, más-línguas, linguarudas, sem pensar muito, sem parar nunca, sem qualquer prudência, sem hesitações, como falam as pessoas que não vivem concentradas em si mesmas, que não ficam fascinadas com as suas próprias palavras, que não gostam de se ouvir mas sim de falar e basta.
Já sei, não respondo porque sou pouco simpática. Mas não me interessa aquela simpatia que se acha tão franca nas primeiras vezes e que depois se transforma numa indiferença definitiva.
Não é vaidade, é falta de jeito estúpido e desastrado.
Gosto de quem me lê com olhos generosos. Obrigada. Adoro quando se senta desse lado e me lê. Vá ficando, é bem-vindo.

segunda-feira, abril 10, 2006

Sabes...

Nem sempre a proximidade aproxima. Neste momento, por exemplo, embora estejas longe, sinto como a tua mão me acaricia devagar. Não precisas dizer nada, não fales, deixa o som da lembrança formar-se, as palavras estão a mais.

Rezas aos anjos e petições aos mortos

Houve uma fase em que me obrigava a mudar a posição da cama para equilibrar as cargas de energia, pensava. E este meu quarto vivia num pandemónio contante. Não sei porque me lembrei disto, talvez porque tenha chegado a casa e, estranhamente, esteja tudo arrumado. Naquela altura recitava umas preces numa língua secreta. Hoje já não. Hoje nada disso me importa. Quem me dera, quem me dera acreditar no que acreditava. Esses cantos tinham o poder de regenerar.

quinta-feira, abril 06, 2006

Os prazeres do corpo

Há sempre alguma coisa que não podemos controlar, alguma coisa que não é razoável, algo de odioso que nos aniquila, uma coisa frente à qual não adianta pensar muito: a morte. Por isso é preciso deixar o corpo dar pulos, irracional como um potro, feliz como um potro, sem meta, à toa, mas feliz, possuído, dominado pelo entuasiasmo. Nada disto suprime a morte, mas torna-a menos dolorosa, menos angustiante, menos insuportável.

Poção mágica

Da mesma maneira que a diabetes é controlada com as doses exactas de insolina, deveriam inventar certos produtos sintetizados que domassem a insónia, a depressão, a tristeza, o desejo e até, porque não, o amor.

quarta-feira, abril 05, 2006

O meio termo

Quando chove na Primavera é como se a cidade tivesse baixado de tom. Sons baixos, roucos, deprimidos. O sol castiga com a ausência. Quero um dia nítido e perfeito. Melhor não. Pensando bem, nada deve ser desespero total nem felicidade sem atenuantes. O ideal é oscilar entre o mínimo e o absoluto.

Sensações

Estava com raiva de si própria. Raiva de ter conseguido ir tão longe com essas sensações que ele, afinal, nunca lhe poderia oferecer. É decepcionante, enregelante, quase quase triste. Voltou ao seu calcular. Definitivamente o cálculo. É uma pena. As sensações são a cifra do mundo, a chave de toda a existência e encerram a maior lição sobre o ser.

segunda-feira, abril 03, 2006

Feel you

Someone Like You (Van Morrison, 1987)

I’ve been searching a long time
For someone exactly like you
I’ve been travelling all around the world
Waiting for you to come through
Someone like you
makes it all worth while
Someone like you
keeps me satisfied
Someone exactly like you
I’ve been travellin’ a hard road
Lookin’ for someone exactly like you
I’ve been carryin’ my heavy load
Waiting for the light to come shining through
Someone like you
makes it all worth while
Someone like you
keeps me satisfied
Someone exactly like you
I’ve been doin’ some soul searching
To find out where you’re at
I’ve been up and down the highway
In all kinds of foreign lands
Someone like you . . .
I’ve been all around the world
Marching to the beat of a different drum,
But just lately i have realised
The best is yet to come
Someone like you . . .

A disputa entre os olhos e a memória

Há discrepância entre os olhos e a memória porque os olhos dizem que é melhor vê-lo do que lembrar-se dele e a memória diz que é através da recordação que a paixão chega ao olhos e o coração se inflama de amor.

Linguagem ridícula

Começou a contar com os dedos da mão e fez uma rápida contagem mental dos homens que foram seus. A expressão era absurda: nenhum homem tinha sido seu; eram todos de si próprios.

domingo, abril 02, 2006

Requintada tensão

Da mesma maneira que o hipocondríaco que piora muitas vezes mesmo antes de ficar doente, fazia ensaios de dor. Sofria por antecipação, fazia de todos os instantes um risco. Era esta a sua forma intensa de sentir o amor.

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