domingo, outubro 30, 2005

Indícios de consentimento

Há que reparar como as suas palavras vão ficando mais animadas, como vai e vem a cor da sua face, reparar no movimento nervoso das pernas e no revirar dos olhos que parece que crescem, que se abrem para ouvir melhor, é preciso reparar nisso tudo para saber que interessamos à mulher que está sentada à nossa frente, disse-lhe.

Sem resposta

Um dia escreveu-lhe: Maria, estou farto dos silêncios, quero que fales, que tenhas voz, começo a ter vontade de tudo, de ti toda, quero engolir-te inteira como engulo agora as tuas palavras.
Respondeu-lhe não respondendo.

sexta-feira, outubro 28, 2005

O quê?

Perguntou-lhe: Maria, quem é ela? Umas vezes escreves na primeira pessoa, outras vezes na terceira, não percebo.
Respondeu-lhe: Ela é uma mulher muito carnal, de sorriso imperfeito. Um hieróglifo.

Finalmente dormiu

Não dormia. Alguma coisa lhe roubava o sono. Mas forçou-se a fechar os olhos como se colocasse a tampa da lente de uma câmara. A escuridão caiu-lhe bem. Descontraiu. Adormeceu. Melhor até: ao acordar a primeira coisa de que se lembrou não foi dele, mas de um café com leite. E isso foi um consolo.

Pequeno mundo

Raramente saía do seu sexto andar à noite. Lá em baixo estava a peste. E a peste faz estragos. Lá dentro, no seu apartamento no sexto andar, tudo era morno e tranquilo como um útero. E à noite, à noite fechava-se nessa fortaleza de cobertores da cama dela.

Ênfase

Perguntou-lhe: Maria, porque escreves estas histórias disfarçadas de hipérboles?
Respondeu-lhe: Porque tudo o que é exagerado se percebe melhor.

Diagnóstico

Parecia tão franca e directa, tão desinibida no meio da comum hipocrisia que talvez lhe atribuíssem muitos mais pecados do que aqueles que era capaz de cometer.

Rubor típico

Não era tímida por insuficiência mental mas por excesso de reflexão introspectiva, pensou ele.

Mais espírito, menos carne

Ela tinha uma recordação muito mais viva, muito mais marcante, de alguns homens com quem nunca tivera nada de corporal, nem beijos profundos, nem uma noite.
Alguns com que se deitara, foram episódios efémeros, rudes apelos de uma biologia demasiado exigente, pura obediência aos imperativos da carne.

quarta-feira, outubro 26, 2005

Expressões

Existem momentos em que tenho de segurar a alma com os dentes porque parece que vai escapar do meu corpo com o prazer que eu sinto por todas as minhas aberturas.

Hoje

Hoje, quer-me parecer que escrevo mais emails que posts.
(Li isto num blogue qualquer, que me desculpe o seu autor, mas não recordo onde)
Mas aplica-se.

terça-feira, outubro 25, 2005

A alma

É esquisito como às vezes uma pessoa tem a sensação de estar a sair do corpo e a consciência consegue olhar, de fora, para o corpo onde no entanto mora, o corpo donde nasce a consciência e que a encerra. Daí deve provir a crença na alma.

Disfarçava mal

Boca carnuda, lábios fortes, grandes, os lábios certos para beijar.
A sua boca era uma soma de perfeições.
E quando ele lhe fez esse diagnóstico do seu rubor, ela disse-lhe, corando, que não, que era outra coisa, e o pior era que não sabia o quê, pois corava até estando sozinha.

Hoje

Corou de vergonha; na penumbra e sem espelhos soube que estava a corar de vergonha.

sexta-feira, outubro 21, 2005

Marias

Dei-me conta das inúmeras caras que cada um de nós pode ter na nossa própria, na nossa única e em aparência, unânime cara. Eu era feliz e triste, angustiada e radiante, entusiasmada e frágil. Era indiferente, intensa, submissa, mansa, dócil, furiosa, santa, procaz, maligna, endiabrada, assustada, arrasada, magnífica, avarenta, generosa, bela e horrível.
Eu era tudo.
Descobri todas as Marias que tinha dentro, tudo o que seria capaz de ser caso fosse preciso, se conseguisse viver o tempo suficiente para vir a ser todas as que sou.

Verdades

Cada dia traz consigo o seu pequeno esforço.

Cheirando-se e olhando-se

No início os cheiros afectavam-me, se um homem cheirava a alguma coisa eu escandalizava-me, ficava horrorizada. Era como as crianças, que não suportam o cheiro do vinho e do queijo: é preciso amadurecer os sentidos.
Agora quase que preciso que um homem cheire a alguma coisa e desilude-me, entristece-me se ele não cheira a nada. Talvez uma pessoa só vá ficando completa com o passar do tempo.

quarta-feira, outubro 19, 2005

O mais feliz dos cansaços

A certa altura, sempre, de cada vez, nunca falhava, via como ela levava os olhos para o infinito, para o nada, via que já não conseguia ficar ligada às coisas deste mundo, já se ia embora, ia-se embora, pois era absurdo dizer que se vinha quando estava mais longe do que nunca deste mundo, e começava a gemer, a gritar, quase a arrotar palavras e tinha uma mais forte e mais brusca erupção de cola escaldante entre as pernas. Berrava, com a pele toda eriçada, estremecida como num ataque de epilepsia, incapaz de suportar em silêncio e quietude tanta delícia, fora de si, alheada deste mundo, fora do mundo que só podemos visitar por uns segundos. E ele ficava a olhá-la, com maior atenção do que para uma obra de arte.

Mergulho

Ela tinha, entre as pernas, uma humidade que só lá existe.

Indícios de consentimento

O que é que acontece quando um homem e uma mulher decidem que vão fazer amor?
No geral, nem sequer o dizem um ao outro, mas sabem, secretamente sabem.

Kiss me

Quero. Um em particular.

segunda-feira, outubro 17, 2005

Kissing a Fool

Agora na voz de George Michael, a tocar no repeat toda a noite... Ah que perfume magnífico... Que bem combinamos os três: Eu, o meu sofá, e esta voz.
Kiss a fool - George Michael
Kissing a fool,George Michael

O amor é outra coisa

Ao voltar para o quarto, ele já se tinha vestido e ela, para os seus botões, disse: "ainda bem".
Sentiu-se na obrigação de lhe dar um beijo, mais um. Não queria dar-lhe mais beijos, mas não estava bem tantos beijos antes e nenhum depois, por isso deu-lhe um beijo, mais um beijo, e ainda mais um. Lembrando-se sem prazer desses beijos extra que teve de dar sem vontade, foi abandonando o mundo dos acordados e caiu completamente no esquecimento de tudo, e sobretudo dele, daquilo e de si própria.
Se não fossem três da madrugada ela teria ligado a Pedro para lhe dizer que o amava.

Valerá a pena pensar nisto?

Deveríamos ser, com as pessoas próximas, tão indulgentes e imparciais quanto somos com aquelas que não nos tocam directamente.
Deveríamos conseguir perdoar tão facilmente a traição do próprio parceiro como fazemos no caso dos outros. Um amigo conta-nos que traiu a mulher e nós compreendemo-lo. Até nos rimos e apoiamos. Também estimulamos as amigas a terem de quando em vez um caso. Mas ai! se for o nosso parceiro quem fizer a mesma coisa!
Do mesmo modo, em casa, não suportamos que falte gelo no copo de água, que o garfo esteja torto e a faca sem fio, que o nosso irmão assoe o nariz em público e que a nossa mãe diga uma parvoice ou revele um segredo estúpido à cerca da nossa infância. Mas na casa dos outros não nos importamos com o garfo torto, a faca romba, a água morna, nem com o irmão ranhoso nem com a mãe burra, desde que seja o irmão e a mãe de outra pessoa.
Somos, de facto, duros e moralistas com as pessoas que escolhemos para ficar ao pé de nós.
Desculpamos as grandes traições que se fazem aos outros, mas não desculpamos nem as pequenas que nos fazem a nós.

sexta-feira, outubro 14, 2005

Conclusão importante

Cheguei à conclusão de que sai mais em conta comprar frutas grandes do que frutas pequenas porque há menos desperdício de cascas e mais volume de polpa.
O mesmo acontece com as batatas, tomates e beringelas.
Não há dúvida que este meu cérebro produz ideias, tal como o meu pâncreas produz insolina.

quinta-feira, outubro 13, 2005

Na cama e doutras camas

Ela começou a falar numa outra noite, de barriga para cima na cama, de mão dada com ele, falando rápida e nervosamente, como sempre, exagerada, como sempre, exaltada, como quase sempre. E ele ao pé dela, atento às suas palavras, à espreita das suas histórias, remexendo nas lembranças dela como um mineiro, desejoso de saber tudo tintim por tintim, como é hábito, e também, como sempre, sofrendo com as palavras dela, com a contagem dos seus casos de cama contados na cama, evocados na cama, como sempre. No palco da cama, despidos os dois, de mãos dadas, continuavam a falar doutras camas, das camas em que ela se tinha deitado acompanhada, como sempre.

quarta-feira, outubro 12, 2005

Susan Wong

Escolher um disco para ouvir é uma tarefa longa, como procurar uma agulha num palheiro.
Admiro a capa, o aspecto e as cores, tento lembrar-me da última vez que o ouvi e que sentimento me causou.
Desligo a luz e deito-me no sofá e espero que me absorva, quase não me mexo. Sinto aquela tensão do silêncio provocada pelos primeiros segundos que antecedem a música.
E aí começa a cantar Susan Wong, a minha escolha deste serão, com um disco chamado "Just a little bossa nova".

Mera racionalidade

Tudo quanto não fosse pensamento científico, investigação, teoremas, técnica, tudo quanto não fosse simbologia lógica e fórmulas exactas, tudo quanto se afastasse de formulações rigorosas, toda a prosa e a poesia do mundo eram para ele parvoíces, divagações vãs, porque a seu ver, a partir do século XX, a ciência desfrutava já do monopólio todo da magia. Tudo, para ele, era susceptível de ser racionalizado, pensado, meditado, nada podia ser deixado à intuição, essa virtude insensata que, na opinião dele, era um terrível vício feminino. Detestava os romances, porque fazia com que as pessoas perdessem tempo, e a poesia porque era uma coisa vaga e sem sentido, e a arte em geral, porque ninguém tinha conseguido explicar-lhe bem a diferença entre Picasso e as burradas pintadas pelo rabo de um burro.
Nunca o conheci bem.
Morreu hoje.
Só.

terça-feira, outubro 11, 2005

Da existência nada fica

A vida é esta, só esta.
Aqui acaba, não somos eternos. Até a alma, como dizia alguém, é muito mais mortal do que o corpo. O corpo, pelo menos, dura alguns anos, transforma-se em seiva, em comida de vermes, em adubo, em jantar de aves de rapina. Mas da alma mal permanece um eco, uma recordação. As palavras faladas e pensadas podem morrer antes do corpo. Uma doença vascular, uma perca de ligação entre os neurónios e pronto, muda para o resto da vida, sem voz, sem palavras, sem escrita. Que é como dizer...sem alma.

segunda-feira, outubro 10, 2005

Novo ritmo

Atribuí ao meus dias um passo menos agitado.
É bom desistir da ânsia, das pressas, do desassossego, das correrias, poder deitar-me para ver as nuvens no céu, sentir as plantas a crescerem, os planetas a mexerem-se, a penugem das árvores a desaparecer, o sol a ocultar-se, a lua a desaparecer, a chuva a cair, a água a evaporar-se.
Delicia-me a ideia de parar de correr e começar a caminhar.

quinta-feira, outubro 06, 2005

Maldito Blogue

A verdade é que este blogue parece ter vida própria, só escreve sobre o que lhe apetece mesmo correndo o risco de espantar os poucos leitores que tem.
É minha intenção escrever menos, com menos raiva e tristeza. Sendo assim, meti no quarto dos podres todas as lembranças, pendurei-as na parede. Ainda fiquei umas horas a olhar para esse mausoléu da minha memória, mas bati-lhe a porta na cara.
Voltei à sala.
Faço chá e ponho música a tocar, um fragmento desesperado de Leonard Cohen (porque houve alguém que me fez gostar dele) que me foi dando, no fim, a frágil sensação de bem-estar.

quarta-feira, outubro 05, 2005

Procura-se

... aquela mulher, aliás aquela menina de riso fácil e franco, de brilho no olhar e cara ensonada de manhã, sem preconceitos e sem medos?
Alguém a viu?
A última vez que foi vista a gostar do mundo e das pessoas foi há muito tempo...

Procura-se

...aquela mulher, aliás aquela rapariga de sorriso fixo, alegre, com olhar aberto, constante.
Alguém a viu?

terça-feira, outubro 04, 2005

Não me reconheci nas poucas palavras que disseste de mim

Fizeste-me sentir uma menina, depois uma estranha, mais tarde um bicho.
Mas nunca era eu.
(Para L.)

Nada ficou como prova

Fechos os olhos e faço por fixar uma só imagem na memória, um só movimento dos teus braços, uma única palavra. Mas não consigo.
A imagem escorrega, desfaz-se no centro e nos cantos. Quanto mais tento mais me escapa.
Volto atrás a recomeço. Mas o que me vem não é o mesmo.
Não quero abrir os olhos para não ter que não te encontrar.

Blogue maldito

Este blogue precisa, urgentemente, de mudar de sabor.
O sabor é azedo, o tom é triste, as palavras sentem-se sozinhas.
Quantas frases escrevi eu ao todo que de facto tivessem valido a pena ser escritas?
Penso nisto enquanto tomo o meu chá.
Todas as frases são completamente inúteis, as mais belas recordações serão sempre mudas.

Faz escuro

Vim aqui parar como quem fugiu durante muito tempo e tem de continuar a fugir, mas perdeu as forças e tem a certeza que alguém a vem buscar. E não chega ninguém.

segunda-feira, outubro 03, 2005

Insónia à volta da solidão

Quando não consigo dormir, o que acontece muito frequentemente, as minhas ideias desfiam-se e ramificam-se como uma árvore atingida por um raio.
Os olhos abertos contra o tecto que não vejo.
E penso nesta frase, lida já não sei onde: "A solidão é tão maravilhosa que é preciso partilhá-la com alguém".

A existência

Às vezes, depois de tanta metafísica, dão-me ataques de riso físico, demasiado físico, quando me dou conta que a vida é só esta.

Submersão

Quero continuar ainda com esta inércia do coração, no vaivém de umas ondas cujo impulso é já muito possível prever - o golpe definitivo e mortal contra a falésia - e quero deixar-me arrastar por essa maré.

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