terça-feira, maio 31, 2005

O medo

O medo, o medo.
Quem tem medo do engano padece-o mil vezes antes de padecê-lo.

segunda-feira, maio 30, 2005

"Escrita odorífera"

O meu amigo António chamou a esta escrita, "escrita odorífera". Bem, não terá sido assim exactamente. Quer dizer, foi assim exactamente, mas não exactamente para mim. Com muita ou pouca exactidão, obrigada António.
Vou celebrar com um refinado chá preto originário do Ceilão, de odor fantástico e sabor misterioso, encorpado e forte, ideal como bebida para despertar.
Programa de entretenimento para esta noite: beber o dito chá e ver, pela enésima vez, o meu filme preferido "Instantes Decisivos", de título original "Sliding doors".

O amor é outra coisa

Apaguei a luz, sem conseguir dormir.
Não recordava com paixão os seus dentes, nem o seu hálito, nem os seus olhos, nem o seu peito, nem coisa nenhuma.
Tinha feito tudo como quem se deixa a rolar com uma bicicleta por uma encosta abaixo.
Continua-se a descer apenas pelo impulso, pela inércia e porque a descida ainda não acabou. Nem é preciso pedalar.
No instante em que a descida acabar, acabará também o passeio de bicicleta.

domingo, maio 29, 2005

Maria

Maria fez mentalmente uma lista dos seus amantes como quem reza um rosário de desapontamentos. Com certeza absoluta que, por vezes, tinha desfrutado da vida com muitos deles.
Mas aqueles de quem ela mais gostara, infalivelmente, tinham-se ido embora, perdera-os nalguma curva da sua vida.
Imensas vezes, para não ficar sozinha, tinha-se resignado à companhia de homens que a faziam envergonhar-se de si própria. Fazia amor com eles como que de longe, nos dias em que sentia que o desejo era um impulso inadiável, mas não se entregava completamente.
Despia-se com vontade de fazer amor mas sem vontade de ser vista nua, com raiva de que alguém a pudesse ver assim, até com medo de que esses tipos andassem a contar a toda a gente que fizeram amor com ela.
Deixava-se montar pela frente e por detrás, mas esquivava-se a toda a tentativa de carícia muito íntima ou de beijo profundo.
Eles metiam-lhe um bocadinho de nojo até no momento em que sentia o orgasmo a aproximar-se. Até que enfim!
Depois ficava só à espera que eles acabassem depressa para poder ir lavar-se, para poder inventar um trabalho qualquer ou um encontro que a libertasse da obrigação da sua companhia.

segunda-feira, maio 23, 2005

Fazer alguma coisa

Faço chichi.
Bebo água da torneira na concha da mão.
O meu coração bate com força e sinto a testa a suar.
Desligo a luz da casa de banho e volto a deitar-me.
O que é que vou fazer, agora que não o tenho no meu serão?
Para fazer alguma coisa, para tentar controlar-me, bebo chá.

Não preciso de tanto só para mim

Parece que alguma coisa me obrigou a partir o mundo em dois.
Deste lado eu.
Do outro lado tu.

segunda-feira, maio 16, 2005

Gostos não se discutem

Gosto de saudades e de tristezas,
Gosto do silêncio e da minha casa vazia,
de receber flores e postais de aniversário,
Gosto de dedicatórias e dedicação,
Gosto de cerejas, nêsperas e morangos
de vodka e de vinho tinto,
Gosto de Michael Nyman e de Feist,
Gosto do meu pai e da minha mãe,
e de toda a minha família com algumas excepções,
Gosto de prazeres, de mimos e de afectos,
Gosto de sussuros, de carícias e de amores discretos,
Gosto de blazers pretos, de brincos e jeans,
Gosto de futebol e de ver o FCP a ganhar,
Gosto de fumar cigarros e do cheiro do cachimbo,
Gosto de crianças e de idosos,
Gosto de empadão, de gambas e de patés,
Gosto de natação, de mergulhar e de me estender ao sol,
Gosto de livros e de letras de músicas,
de ver o Sérgio Godinho e o Jorge Palma a actuarem,
de ir ao cinema sozinha e ser a última a sair da sala
Gosto de bailado e de musicais,
de ler o jornal numa esplanada, sábado de manhã,
Gosto de café, sumo de laranja e torradas com mel,
Gosto do Verão e do sol,
mas também gosto da lua e da noite,
Gosto de me enrolar numa mantinha quentinha,
Gosto de saltos altos e de tenis,
Gosto de rimel, de baton e cremes hidratantes,
e de tshirts brancas,
Gosto do teu cheiro e do teu olhar,
Gosto de te ter sempre perto,
Gosto de pequenos nadas, que te transformam em mais que tudo,
Gosto de me levantar cedo, de me espreguiçar, acordar e voltar para a cama,
Gosto da vida, gosto de mim e da minha cara ensonada de manhã.

domingo, maio 15, 2005

Uma mulher interessada, na verdade, nunca está ocupada, e muito menos nas primeiras semanas

Telefonei devido apenas às boas maneiras da minha boa educação.
A que propósito?
Apenas uma espécie de acto de agradecimento, para deixar uma mensagem de afecto, de interesse.
Não ligar no dia seguinte era como declarar aos berros: USEI-TE QUANDO ESTAVA A GOSTAR ou NÃO GOSTEI MESMO NADA DE TI.
Por isso liguei, só por isso, porque queria aparentar muito prazer e nada de uso, embora nenhuma das duas coisas fosse bem verdadeira. Se tivesse sido de todo sincera deveria ter-lhe dito: não gosto muito de ti, não desperdicei a ocasião, mas agora que a novidade já passou não estou interessada, o desejo desapareceu, tchau!
Quando uma mulher vai para a cama com um homem sem estar apaixonada, a sua tolerância com o homem é mínima, não se vê a hora de tirar esse fardo de cima.

Finalmente em casa.

terça-feira, maio 10, 2005

Saudades

Nunca, durante estas 3 semanas de calma, tivera tantas saudades dos parênteses que causou na minha vida.

Disse-me que não era preciso agradecer.
Eu digo que está bem e acendo um cigarro.
E calei-me.
E nem soube dizer o quanto gostei do postal. Aquele pequenino postal, escrito à mão, com a letra dele, dentro da minha caixa do correio.
Tenho esse postal na minha mão, neste momento.
Sei de cor o que lá está escrito.
Sim, talvez tenha dito o indispensável.
E a seguir veio o choro aflito. Nunca me senti tão vulgar, tão indiferente.
Doi-me tudo, sobretudo a alma.
E agora não quero mais nada. Nem o chá.
Agora quero estar só com ele dentro de mim.


Sublime idiotice

Quando penso no meu chefe, só me ocorre dizer isto:
É um ser a metade.
Nem introvertido nem extrovertido, nem burro nem inteligente.
É o perfeito homem médio: aos 40 anos não é nem jovem nem velho; com + - 75kilos não é nem gordo nem magro; com + - 1.70m não é nem alto nem baixo; tão pouco é cabeludo ou careca; a sua voz não é nem de tenor nem de baixo; trabalhador sem excessos não é nem activo nem passivo; olhando bem para ele não é bonito nem feio e a julgar pela sua conta no banco não é nem rico nem pobre.
Nunca é nítido, nunca é nada de especial, nada de excepcional. Nunca tem ideias firmes, nem forte carácter, nem perfeita integridade.
É esse ser mediano, esse perfeito meio-temo entre as exactas características de todos os outros.
Excepcionalmente idiota, quando vamos juntos a alguma reunião, eu começo a tremer quando ele abre a boca.
Hoje apeteceu-me despedir-me!

Idiotice pronunciada

Pois é, a reputação é primordial.
Uma pessoa sem reputação de burro, ou aliás com reputação de ser inteligente, pode permitir-se a qualquer asneira: se for uma parvoíce, as pessoas riem pensando que é ironia; se for exactidão, acham que está a dizer uma piada.
Tudo é aplaudido àqueles que têm boa reputação, como aos poderosos. Até se engolem as burrices se forem ditas por alguém com suficiente prestígio.
Um parvo, pelo contrário, quando acerta, ninguém repara.

domingo, maio 08, 2005

Quis ver esses olhos, quis conhecer esse segundo olhar

Desta vez, pelo contrário, deixei-me arrastar, e ele levou-me consigo, seduziu-me mais facilmente do que um pedaço de pão a uma boca com fome.
Como se chama?
Maria
O meu nome é Pedro.
O meu número é 961234567. Sorri de novo, com os dentes todos, e afastei-me a correr, como fugindo de uma vergonha secreta pelo que acabara de fazer.
Mesmo assim olhei ainda duas vezes para trás, com o mesmo sorriso, o mesmo olhar.

sábado, maio 07, 2005

Quase invisível

Gosto de me sentir envolvida em película transparente. Aquela mesmo de uso doméstico.
Uma camada transparente, mais ou menos blindada que me protege e separa-me sempre da realidade de fora: ruído, sujidade, papeis, cimento, chuva, autocarros, poeira, ruínas, tascas, rap, bêbados, mal-criados, cadáveres.
A realidade, essa terrível aglomeração de substantivos, esse montão de agressores, vejo-a sempre através da película.
É como se estivesse sempre do lado de cá da janela, vendo sempre tudo através do vidro: da janela de casa, da janela do carro, do outro lado da janela do escritório, da janela do avião, do outro lado da montra do café, pela janela virtual da televisão ou do computador.
Sempre, sempre envolta nessa borbulha em que me sinto a salvo dessa incompreensível, inquietante e agressiva multidão que se agita e caminha e remexe e zumbe e grita agitada como um vespeiro.

sexta-feira, maio 06, 2005

Sem céu nem reencarnação, sem inferno ou limbo

Não acredito em nada.
É assim que as pessoas dizem quando não se tem crenças religiosas ou espirituais: que não acreditam em nada.
Na realidade, eu acredito em montes de coisas: que as zebras são reais e às riscas, por exemplo, e os unicórnios cornudos mas irreais; acredito nos planetas como sendo reais, mas não nas suas pesumíveis influências sobre a nossa psique; acredito que existam, mesmo que não sejam vistos, os átomos; que a velocidade da luz é maior do que a do som e a do som maior do que a do leopardo; que eu esteja viva, que os ladrilhos de que sou feita são átomos, células e cadeias de DNA, e que estes um dia hão-de morrer. Também acredito que eu hei-de morrer, como os leopardos, as vacas ou os chimpanzés, definitivamente.
Não acredito no além, em qualquer sobrevivência depois da morte.
E é mesmo isso, acreditar (ou não acreditar) nestes assuntos post mortem, o que as pessoas chamam "não acreditar em nada".
Nesse sentido, com efeito, não acredito:
no medo de passar por baixo de uma escada
não me angustia o canto das aves de agouro
nem o passar de gatos negros
nem a geometria das linhas da mão
nem o percurso dos astros no céu
tenho medo de ladrões e assassinos, mas não de fantasmas
não acredito na sobrevivência das almas nem do espírito
e com a morte, todos os humanos morrem definitivamente, igual a todos os mamíferos e a todos os insectos.
Mas conservo alguma réstia de temores mágicos. Acredito, por exemplo, estar condenada a jantar sozinha.

segunda-feira, maio 02, 2005

Torradas de mel com golos pequenos de chá

Hoje tomo chá.
Esquece-te de tudo, Maria.
Fica só com o sabor quente do chá.
Deita pela janela fora tudo o que tens trazido agarrado a ti: pequenos pensamentos, anseios, desejos vagos, os olhos dele.
Fecho os olhos e ao tocar no chá quente com os lábios concentro-me unicamente num rasto do seu corpo ainda quente nos meus dedos.
Primeiro vem o cheiro, depois os olhos desde sempre conhecidos, a seguir o abraço de mistura com boca e depois, a despedida.

Faço café e ponho música

Ainda o vejo.
Ainda recordo as fotografias.
Olho devagar para esse memorando do passado e sinto-me de repente velha, e viúva, e muito triste, triste e só.
Olho-o imenso tempo, de olhos fechados, às vezes vivo, às vezes morto.
Fecho os olhos para conseguir vê-lo.
Sento-me no chão, as mãos na cara, sobre os olhos, com uma tristeza muito mais profunda que o choro.

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