sexta-feira, setembro 30, 2005

Pedro Saraiva

Era uma manhã de sábado e estava confiante que o encontraria na estação do Oriente à minha espera. Meados de Setembro, uma chuva miudinha cobria as ruas. E o comboio chegou na hora prevista e eu desci, e na hora prevista vi-o, ele viu-me, vimo-nos. E nunca Lisboa se tinha mostrado tão bonita, uma luz que só eu vi, embora chovesse, embora estivesse escuro, uma pequena penumbra.
Doi muito. Se escrevo é só para me livrar disto de vez. A escrita tem a vantagem de me desfazer de mim.
Eu não sabia o que era estar apaixonada até ficar apaixonada e quando fiquei, fiquei para sempre porque, tal como a palavra Deus, a palavra amor traz consigo a palavra sempre, não é? É. É, sim.
Fiquei a olhá-lo de longe, depois mais perto, até se encostar em mim.
Tem um nariz com personalidade, disse-lhe. Eu sei que é uma coisa muito idiota de se dizer, mas disse-o. Não era um nariz vulgar, longe de ser comprido e feio, era, portanto, um nariz com personalidade. Tinha uma cara a rir, um corpo alto. Mas isso agora não interessa. O que vale a pena repetir é tudo desde o princípio: encantou-me, mal o vi. Ele foi o primeiro e depois dele, os outros são os outros.
Isto foi há muito tempo e foi há bocadinho e voltou a ser agora e pode vir a ser outra vez, muitas vezes, todas as vezes, porque não tenho mão nas vezes que penso nele. Como foi há muito tempo houve tempo para esquecer e voltar a lembrar, como hoje, que o lembro como naquele dia. E hoje escrevo sobre ele porque sinto, como há muito tempo não sentia, uma estranha vontade de escrever sobre ele. Ele está longe, embora não muito longe, o suficiente só para nunca mais o ter visto. E ele representa a memória de toda a beleza, que é a coisa mais triste e melancólica que se possa imaginar.
Não sei se consigo descrever o que sinto agora, é como um grito doloroso, profundo, longo, e só me apetece deixar-me cair na cama, como uma árvore cortada, e sinto-me como uma viúva recente, como uma órfã, como se tivesse acabado de enterrar a pessoa que mais feliz me fizera, o homem que, sem dúvida, foi, entre todos, o único amado.
Ele tinha o cabelo escuro, sempre curto. Umas mãos de criador e de repente, sem ordem, ainda sinto a boca dele, primeiro no ombro, depois no pescoço, depois, só depois na boca. Eu, de olhos muito fechados, a descobrir a boca dele, como se nunca tivesse beijado a boca de um homem, surpreendida que houvesse alguma coisa como uma boca, coisa inimaginável, impossível. E depois, dentro de um quarto. Nesse domingo acordei feliz. É insuportável este assalto de saudade.
Não é preciso que nada se repita, porque nada se repete.


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